Depoimentos:

#longlivepdg, 2022

Excertos da entrevista: Manuel Botelho speaks about his exhibition #longlivepdg at Galeria Miguel Nabinho; Abril de 2022.

https://www.youtube.com/watch?v=XvSW9DTBXl4

“[…] Quando eu nasci para as artes e para estas coisas de uma forma consciente nós ainda vivíamos no tempo do fascismo e eu arranquei […] num ano charneira para mim […] o ano do Maio de 68 […]. Este tipo de vivência da arte como uma coisa que não se fecha sobre si própria sempre esteve comigo; desde a origem.”

“[Em janeiro passado] vim aterrar dentro de uma luta cívica. Essa luta […] estava a decorrer. Eu não sabia nem conhecia ninguém […] mas estava a acontecer aqui a defesa de um espaço coletivo muito valioso e que é utilizado por milhares de pessoas.”

“[O Parque das Gerações] é uma coisa fascinante e linda; é vida, mas é uma vida que está ameaçada […]. [Na minha exposição] há umas imagens que são celebratórias e que têm a ver com esta vida toda e com a alegria que eu sinto aqui, mas há também uma dimensão muito diferente e muito reflexiva […], bastante sombria, porque eu aterrei num sitio que estava com as rampas pintadas de negro, paredes pintadas de negro, com dísticos brancos, pungentes, dramáticos, a alertar as pessoas para a ameaça real […].”

“Se calhar nestes últimos anos tenho estado a fazer as pinturas que muitas vezes ansiei fazer, mas que não podia fazer através dos meios pictóricos […]. Eu não me chamo Gerhard Richter e o meu trabalho não é assim. […] Mas sinto que consegui [talvez!] fazer essas “pinturas” […] com a fotografia…”

  • (Texto lido aquando do lançamento do livro (Im)permanência; Museu Nacional de Arte Antiga, 19-02-2020)
    (Im)permanência, o livro

    Vou contar esta história em duas partes, um pouco estranhas: uma introdução e um epílogo.
    Primeiro, a introdução.
    Tudo começou em novembro de 2014 com uma visita ao Museu Machado de Castro e uma súbita paixão pela escultura do nosso país. Seguiram-se 2 anos de trabalho dedicado, em que percorri o norte e centro de Portugal de lés a lés. Tinha uma lista de túmulos com jacente; um programa a cumprir sem data para terminar.
    Estive em Coimbra, Tentúgal, Góis, Trofa do Vouga ou Oliveira do Hospital; fui e vim várias vezes a Alcobaça e à Batalha; regressei a Lisboa, dei uma saltada a Évora; de novo na estrada parei em Guimarães, em Braga, no Porto, em Vila do Conde. A lista é maior e pouco adianta completá-la neste momento, mas foram dois anos de fascínio em que me detive perante dezenas de monumentos.
    Com um núcleo de imagens na carteira, fui bater a várias portas. Errei talvez na escolha porque encontrei-as fechadas. A pouco e pouco o entusiasmo iria desvanecer-se. Mesmo assim fui sensível ao brilho no olhar de alguns com quem falei. Recordo em particular o entusiasmo do Anísio Franco e da Maria João Vilhena, aqui mesmo, no Museu de Arte Antiga.
    Em 2017, o convite inesperado para participar num congresso sobre escultura tumular forçou-me a desenterrar as imagens da dormência terminal em que pensava tê-las arrumado. O Anísio tinha denunciado o meu projeto às pessoas mais próximas e o Fernando António Baptista Pereira e a Giulia Rossi Vairo pegaram no telefone para me inquietar. Tive que rever o trabalho realizado, procurando um sentido para o enigma que eu próprio criara.
    Demorei a decidir um rumo. Melhor ou pior, escrevi um texto e proferi a conferência. Vá-se lá saber porquê, a audiência do congresso foi particularmente sensível às minhas palavras e às imagens que as acompanharam. Pouco tempo depois, um novo desafio obrigou-me a um novo compromisso. E aceitei fazer uma recriação da conferência em formato vídeo para integrar a publicação do congresso.
    Acabei por fazer um pequeno filme, uma obra autónoma em que me empenhei a fundo, mas que por diversas razões ficou fora da publicação. Sem drama, só o texto e as imagens estão lá. O filme foi estreado no Doclisboa 2018 e tem vindo a ser apresentado noutros locais (neste momento podem vê-lo em projeção contínua aqui e no Convento dos Capuchos).
    Nesse mesmo ano apresentei duas fotografias deste projeto na exposição sobre retrato que teve lugar no Museu de Arte Antiga. Foi a primeira vez que vi prints da série em tamanho real e foi nessa altura que a Filipa Oliveira entrou em cena. Voltaria a ligar-me em 2019. Nesse telefonema, ocorrido se a memória não me falha no início de setembro, disse-me que tinha umas ideias para mim… e combinámos falar ao pequeno almoço. Encontrámo-nos na Garrett, no Estoril, alguns dias mais tarde. Entre torradas e meias de leite, desafiou-me a fazer uma exposição no Convento dos Capuchos, onde eu não ia há mais de quarenta anos e de que apenas conhecia a igreja. Visitámos juntos. Não era enorme, mas tinha o espírito certo. Pouco depois o Museu de Arte Antiga associou-se à iniciativa e ficou assente apresentar-se aí um segundo núcleo, muito mais pequeno, com imagens ligadas ao Mosteiro da Batalha.
    O livro que agora se publica, pela mão do Manuel Rosa – da Editora Sistema Solar/Documenta – e com financiamento da Câmara Municipal de Almada, vem complementar estas exposições, reproduzindo o dobro das imagens expostas e associando-lhes textos do João Pinharanda e da Filipa Oliveira, além de uma versão adaptada daquele que escrevi para a conferência e o filme.
    Nenhum livro ou reprodução substitui as obras reais. Todos o sabemos. A escala e o rigor das imagens nunca poderão ser os mesmos. Mas esta publicação cumpre uma função essencial. Sem ela o projeto ficava amputado, incompleto… e no entanto…
    No entanto e em última instância, incompleto terá de ficar, embora menos… Porque a questão que lhe subjaz é excessiva, desmesurada. Muito abreviadamente, é disso que falarei para terminar.
    Passemos então ao epílogo.
    O meu fascínio por túmulos com jacente foi motivado por razões de vária ordem. Primeiro, como vimos, por um interesse pela escultura nacional espoletado pela visita ao Museu Machado de Castro. E depois porque no contacto íntimo com os monumentos funerários outros sentimentos vieram reforçar a paixão.
    Por todos os sítios onde passei deparei-me com o mesmo padrão. Outra coisa não seria de esperar. Trata-se invariavelmente de túmulos de pessoas de grande importância social do seu tempo… se não da própria História de Portugal. São sempre reis, infantes, membros destacados da nobreza, da igreja, ou de uma burguesia endinheirada. Mas no meu contacto com os monumentos funerários essa questão ficou sempre à margem. O poder de atração que os jacentes a rezar ou num sono suspenso exercem sobre mim pouco tem a ver com razões de ordem histórica. Pelo contrário; é como se o hiato temporal que os afasta de nós tivesse operado um misterioso ato de democratização. Pouco conta o estrato social, o nome ou o cargo exercido. É a dimensão humana e a intemporalidade que me importam. As próprias vestes e adereços, tantas vezes sumptuosos, desligam-se na minha mente de um sentido ilustrativo que tanta importância teve na origem. Sinto-me perante encenações onde uma espada já não fala necessariamente de guerras ou conquistas, porque nenhuma guerra se trava já com espadas e os meus netos se mascaram e brincam todos os dias com adereços de plástico idênticos aqueles. E o facto de os esqueletos que jazem no fundo das arcas tumulares ainda conterem traços do ADN dos falecidos não adianta nem atrasa. Só a figura em cima da tampa e o enquadramento em que se insere conversam connosco, num fascinante jogo de luz e sombra.
    Na passada 5ª feira estive num congresso de arqueologia. No preciso momento em que o livro estava a ser impresso, encontrava-me eu na Faculdade de Letras a dar o meu pequeno contributo à discussão, integrado num grupo multidisciplinar.
    Falou-se de resíduos humanos, de esqueletos, de memória. Falou-se na dignidade e no respeito… ou no desprezo… pelos que nos deixaram. E falou-se de um cemitério, ou melhor, de um espaço onde em tempos foram enterrados anarquicamente escravos. Em Lagos. Escravos que não eram considerados pessoas, mas sim coisas. Coisas transacionáveis como uma qualquer carroça ou pipa de vinho. Assim, esse espaço de enterramento não era um cemitério, mas uma simples lixeira. Um vazadouro. E penso nesses escravos, pessoas como eu, cuja dignidade em nada se diferencia da dos mortos das minhas sepulturas. E apetece-me ir buscar um esqueleto de Lagos e colocá-lo num desses túmulos. Porque do ponto de vista humano essas pessoas, cujo sofrimento ainda hoje nos assombra, têm tanto direito aquele monumento como quem ali foi sepultado.
    E ao rever o meu projeto fotográfico, penitencio-me talvez por ter cedido à minha vocação de professor, à minha crença na importância dos valores históricos e do conhecimento. Coisas tão decisivas, mas que aparentemente chocam com tudo o que acabo de dizer.
    É verdade que os títulos das minhas fotografias são deliberadamente neutros. Não identificam ninguém, apenas a série, que se intitula (im)permanência, uma denominação que não aponta nomes ou lugares, mas antes um traço comum a todos nós, à nossa existência perecível e à finitude dos próprios monumentos fotografados. Mas por baixo, tanto no livro como nas fichas técnicas da exposição, optei por manter a identificação do monumento e o nome do defunto. Se tivesse sido inteiramente coerente com os meus sentimentos não estava lá nada disso. Estava um espaço vazio. Um espaço em branco que podia ser preenchido com o nome fosse de quem fosse. Com o nome, talvez, de um dos escravos despejados de forma abjeta nessa “lixeira” de Lagos.
    Obrigado pela vossa atenção.

    S. Pedro do Estoril, 18 de fevereiro de 2020
    Manuel Botelho


  • Album, 2017

    Naquela enorme sala do Museu Militar, fui soldado. Estive mobilizado em África, talvez em Mueda, ou Nambuangongo, ou Guileje… Vivi dias de tédio e noites de terror, estive emboscado no mato, dormi agarrado à G3, passei fome, e sede, vomitei rações de combate, esbanjei poupanças a jogar à lerpa, fumei cigarros em doses asfixiantes, tombei intoxicado com tinto e cerveja, morri sem glória na picada. Condenei-me, suicidei-me e perdoei-me.
    Depois, terminada a experiência em Santa Apolónia, regressei a casa. A larga varanda do rés-do-chão transformou-se num aquartelamento perdido no mato. Fiz amor com a madrinha de guerra dos meus sonhos, tracei mapas, construí castelos de cartas, devorei fotonovelas, escrevi aerogramas e desesperei por um correio que tardava.

    Ao longo desses anos fui ator. Dia após dia representei um papel, para uma plateia ausente e tendo uma câmara fotográfica como testemunha. Esta foi a mais longa performance da minha vida. Alimentei-a com um labor metódico de recolector, acumulando relatos, objetos, imagens.
    Numa das minhas inúmeras digressões semanais pela Feira da Ladra dedicadas a essa procura obsessiva, comprei dois álbuns de fotografias. Algumas imagens tinham desaparecido, levadas por outros curiosos da guerra, mas muitas permaneciam no seu lugar de origem, com os cantos meticulosamente fixados às pesadas folhas de cartão. Sem uma ideia clara de como os usar, acabaram por ficar semiesquecidos no meio da tralha e da papelada. Até agora.

    O jovem militar que esteve na origem dessas páginas completou uma comissão em Angola em meados da década de 1960. A sua fisionomia é-me hoje imensamente familiar embora lhe desconheça o nome, patente ou especialidade. Não sei de onde veio nem para onde foi. Pode estar vivo, ou não. Sei apenas que esteve na guerra e que a terá possivelmente vivido na retaguarda, sentado à secretária, em frente a uma máquina de escrever… mas nada é certo.

    Como tantos outros, usou uma máquina fotográfica para registar a memória de sítios e de gentes, recordações sem história; mas não só, porque esses álbuns são percorridos por um leitmotiv menos comum. Este meu misterioso «parente» fotografou-se… ou fez-se fotografar, de forma recorrente. Antes da invasão dos omnipresentes e narcisísticos selfies, foi selfies que fez. E vemos este hipotético amanuense (?) da guerra empunhar espingardas e pistolas, simular ações de combate com metralhadoras e granadas, ou descansar das ações de combate ao som do rádio portátil. Como eu? Quase como eu…

    É esta a origem deste Álbum em formato vídeo, de onde omiti todos os figurantes para deixar crescer o protagonista. Ficaram as paisagens, registos de sítios reais onde o ator único deste duplo slide-show permaneceu ou por onde passou, sobraram objetos, um ou outro bicho a que ganhou afeição, mas na maioria das imagens é ele próprio o centro das atenções. Podemos encontrá-lo por ali, simplesmente, sem pose ou artifício, para de seguida se encenar perante a câmara fotográfica, numa artificialidade de gestos que tanto evoca o dia-a-dia da guerra real como os estereótipos dos velhos westerns norte-americanos. E os sentidos alteram-se, numa reviravolta em que os aquartelamentos e as paisagens angolanas se transmutam num pobre e delapidado estúdio cinematográfico… ou num “cenário quase pós-apocalíptico, de paisagens desertas de gente, onde o único homem que parece existir à face da terra «brinca» a uma guerra imaginária […]. Só que a guerra foi bem real... E para além dos momentos bizarros, até cómicos [presentes nas imagens], sobrepõe-se uma ansiedade e uma solidão tremendas”*.

    * Palavras de Susana Rocha, aluna de doutoramento na FBAUL, no Facebook
    ___

  • Missa Campal / Parada, 2012

    1.

    Misticismo e situações extremas?

    Nem todos participaram em missas e rituais convencionais, mas a guerra estava semeada de imagens da Virgem, de crucifixos, de símbolos de um poder superior que se invoca em busca de salvação. À vista de todos ou na sombra de uma viagem interior, evocaram-se santos, fizeram-se pedidos, súplicas, juramentos.

    Paralelismo entre os santos que se veneram e toda aquela gente, simples civis tornados militares, jovens na flor da idade mobilizados à força para uma guerra absurda, incompreensível. Será isto, também?

    .

    Pequenas imagens tridimensionais ganham vida: compradas em Fátima e na Feira da Ladra, são objetos banais, imperfeitos, quase sempre sujos e deteriorados. Ao serem ampliados adquirem escala real e tornam-se retratos de gente. O seu olhar confronta-nos… ou estabelecem entre si diálogos silenciosos.

    2.

    Paisagens. Sítios reais. Locais de guerra.

    Também utilizei fotografias alheias como pano de fundo: picadas e aquartelamentos na Guiné (fotos do Coronel Ribeiro de Faria); picada em Angola e baía de Luanda (slides do meu tio Aníbal F. Viana, irmão da minha mãe); outras, como a igreja de Novo Redondo, cubatas incendiadas, instalações a arder devido a flagelação (oriundas de várias publicações sobre a guerra em África). A partir daqui as narrativas saíram para o exterior. Até aí tudo acontecia em espaços fechados. Os retratos eram iluminados por uma luz coada de frestas, janelas ou claraboias. Depois tudo passou a acontecer à luz do dia, raramente ao sol, quase sempre em dias enevoados, por vezes em contraluz.

    .

    Imagens de Cristo, de Maria, de Santos, Arcanjo Gabriel… Santos piedosos e guerreiros?

    S. Jorge e o dragão em paisagens africanas (Angola e Guiné). Não sabemos o que o santo e o dragão personificam. Tal como não se saberá quem possa ser o arcanjo e o satanás que enfrenta. Identificam-se sim, e apenas, situações de conflito em que um símbolo maléfico será aniquilado.

    .

    Uma sensação de opressão.

    .

    Santos misturam-se com soldados participantes na missa que decorre em frente a uma capela improvisada, ou inserem-se numa coluna que atravessa o mato.

    Uma Pietá em cenário de devastação.

    A imagem recorrente de um santo com um homem ao colo pode evocar generosidade, abnegação… ou o simples resgate de feridos e estropiados… mas tem em grande parte conotações pessoais, que se intrometem no destino coletivo daqueles homens, naquele tempo…

    3.

    Guiões militares. Cada unidade tinha um. Companhias, batalhões, agrupamentos… de caçadores (infantaria), fuzileiros, artilharia, paraquedistas, comandos. Todos eles desfilavam sob a sua bandeira própria. Só que aqui os guiões fotografados são miniaturas, quase sempre velhas, desvanecidas, por vezes irreconhecíveis. Podem surgir isolados, como num inventário, ou funcionar como pano de fundo de retratos. Podem conter uma iconografia tipicamente militar e evocar ritos religiosos.

    Em todos os casos (e tal como nos «retratos» de santos feitos a partir de estatuetas de pequena dimensão), opera-se aqui uma dupla subversão de escala: estas fotos, de miniaturas, mimetizam o objeto real; mas com a ampliação que acontece de seguida, as imagens quase retomam a dimensão do objeto original, revelando essa dupla transformação (pode ver-se a trama desproporcionadamente grande do tecido e as imperfeições devidas à sua deterioração, os pedaços de tinta que se descolam…).

    Os símbolos de uma bandeira portuguesa desfazem-se, junto às palavras semiapagadas de Camões.

    Também aqui houve uma atenção muito particular à luz utilizada. Suave, melancólica, atenta às particularidades de cada caso mas tentando unificar o conjunto (não estou certo de que esse enorme cuidado seja totalmente percetível; a leitura dos elementos iconográficos poderá sobrepor-se a tudo o mais).

    S. Pedro do Estoril, 2012

  • Nos últimos tempos tenho dado muitas entrevistas. É uma sensação estranha e nova. Dantes ninguém me perguntava nada…

    Claro que é tudo por causa deste tema que ando a trabalhar. Um tema que mexe com a sensibilidade das pessoas… mesmo com aquelas que fingem que a guerra colonial nunca existiu, ou que, se existiu, está morta e não adianta fazer romarias ao cemitério.

    Tenho dito muitas vezes que as razões de ordem política que me motivaram na adolescência foram substituídas por fatores de outra ordem. Quando era novo a questão política era imperiosa, estava viva e era-me fácil ser contra. Contra a opressão e a guerra. Como continuo a ser, porque sempre achei inadmissível a possibilidade de um povo ser dominado por outro. Mas esse assunto está encerrado. Do nosso cadáver colonial já só restam os ossos. Paz à sua alma.

    E a minha atenção desviou-se. Esvaziada a razão de ser da minha revolta original, pude entender uma outra dimensão que até aí permanecera na sombra. E comecei a olhar as pessoas e o que se esconde nos sulcos da pele. Descobri as armas que matam, o amor asfixiado nas cartas e aerogramas, o terror da morte.

    Mas revendo agora o que tenho andado a fazer, parece-me que a dimensão política do meu trabalho, em vez de se esvair, aumentou. Já não vejo o mundo a preto e branco – é estranho como a velhice nos faz descobrir cores que dantes eram invisíveis –, mas a opinião e a paixão não desapareceram, nem a vontade de denunciar. E por baixo das bandeiras os cadáveres ainda nos deixam ouvir um grito abafado. Está lá tudo, só que para descobrir não basta olhar. É preciso ver.

    S. Pedro do Estoril, 21 de Abril de 2012

  • A série Matchbox: Portugal is Not a Small Country faz a denúncia de um dos grandes mitos do nosso passado colonial. A um antigo mapa de propaganda – com o qual o regime salazarista pretendia demonstrar a grandiosidade do império português na primeira metade do séc. XX socorrendo-se do estratagema de sobrepor as áreas das diversas colónias e territórios ultramarinos ao mapa da Europa –, associei fotografias de frente e verso de uma colecção de carteiras de fósforos com imagens dessas mesmas colónias que, depois de radicalmente ampliadas, nos surgem imprecisas e distantes.

    Março de 2010

  • Caro Mário Beja Santos
    […] O trabalho dessa época [anos 80] tem tudo a ver com as fotografias de agora; os nossos combatentes do ultramar que me serviram de inspiração, os que partiram daqui, da metrópole, pertencem em grande parte ao mundo retratado nesses desenhos e pinturas. A guerra de que falo é uma guerra de "pé descalço", de "burros" (não é por acaso que vocês chamavam burrinho ao Unimog) e "casebres" (as descrições das vossas instalações em Missirá são eloquentes), semelhante ao mundo rural, profundamente atrasado, da minha infância.  
    Certo ou errado, é isso que eu sinto.

    25 de Abril de 2008

  • CONFIDENCIAL/DESCLASSIFICADO

    Nos últimos anos vi crescer o meu desejo de identificação com os homens da minha geração que há muito tempo embarcaram para Angola, Guiné e Moçambique, escondidos atrás de um camuflado e uma G3. Sei que não fui um deles. Tive a fortuna de estar no último ano do curso de arquitectura quando o 25 de Abril pôs termo ao pesadelo que me ensombrou a adolescência, e já não experimentei a guerra ao vivo e em directo. Mas vivi-a intensamente, numa antecipação obsessiva que durou toda juventude.

    Desde então muito tempo passou, e a minha perspectiva da vida mudou também. A guerra na África portuguesa deixou de me interessar enquanto fenómeno político e passei a prestar uma outra atenção aos que a fizeram. Muitos (a esmagadora maioria), ainda estão vivos; têm sensivelmente a minha idade; estão carecas e cansados como eu. Alguns serão um pouco mais velhos, mas pertencemos todos a um mesmo tempo, a uma mesma condição. E eis-me a viver um estranho paradoxo: eu, que andei pelas ruas a berrar “nem mais um soldado para as colónias”, comecei a ter sentimentos de culpa por não ter partilhado esse tempo de abnegação e sacrifício. E a minha pintura começou a falar das memórias dessa guerra, como em “Escombros de Wiryiamu”, o massacre no norte de Moçambique que escandalizou o mundo e que evoquei através de um soldado (eu, já velho), sob a ameaça de insectos gigantescos e segurando desoladamente uma G3. Foi essa G3 que quis fotografar de seguida.

    Em 2006, depois da exposição em que apresentei esses trabalhos, senti que alguma coisa devia mudar. Sentia-me enclausurado. A pintura e desenho eram incapazes de traduzir com eficácia o universo temático que tinha em mente… porque, como costumo dizer aos meus alunos, há coisas que são “pintáveis”; outras não.

    Comprei uma máquina fotográfica nova e, quando em Setembro fui ao Museu Militar, tudo o que pretendia era fotografar uma G3 e uma Kalashnikov, as armas emblemáticas da guerra colonial. Talvez esse simples acto me apontasse um caminho novo. Talvez um registo impessoal desses vestígios me indicasse para onde seguir. Talvez o rigor metálico de uma G3 ditasse o futuro próximo da minha obra. E foi uma G3 que fotografei; e uma Kalashnikov; e uma FN; e uma Mauser. Às tantas tinha o chão coberto de armas. E aqueles 3 ou 4 dias iniciais começaram a multiplicar-se. Os dias transformaram-se em semanas, as semanas em meses. Em determinado momento já não sabia o que havia de fazer e desatei a inventar outras coisas, dando sequência a desenhos e pinturas anteriores e experimentado territórios completamente novos. E começaram as incursões à feira da Ladra. Comprei equipamento militar da época, velhos camuflados, cinturões, cantis, botas e quicos, e pouco depois estava a invadir o Museu com objectos de toda a ordem, grandes e pequenos: placas de madeira, tapetes de trapos, sardinhas enlatadas, plantas secas e terra, muita terra, cinzenta, vermelha… que fazia agora dialogar com granadas, facas de mato, pistolas, espingardas, minas anti-carro…

    Como estavam previstas 3 exposições simultâneas nos primeiros meses de 2008, acabei por isolar 3 núcleos mais ou menos autónomos, deixando de fora muitas dezenas de imagens potenciais. E assim se arrumaram as exposições no Museu de Arte Contemporânea de Elvas, na galeria Lisboa 20 e na Fundação EDP.

    Embora ligadas por um fio condutor comum, foram 3 mostras muito diferentes. O “inventário” de Elvas apresentou quase exclusivamente fotografias de armas utilizadas ou apreendidas pelas forças armadas portuguesas, em registos mais ou menos neutros (isto embora uma das minhas grandes preocupações tenha sido descobrir a luz certa para cada caso, o que tornou essas imagens numa espécie de retratos… se é que isso se pode dizer de objectos inertes cuja função é matar). As outras duas exposições seriam mais alegóricas, evocando a guerra de uma forma quase sempre indirecta. Se na Lisboa 20 a “emboscada” ainda incluía algumas cenas de “acção” (?), outras imagens eram sobretudo rituais, com um velho combatente em dialogo consigo próprio ou à beira da loucura e do suicídio. E na “ração de combate”, exposta na EDP, foi a retaguarda que serviu de pano de fundo, e o tempo sem fim das unidades de quadrícula, esses aquartelamentos que desenharam nos mapas e gabinetes (que não necessariamente na realidade vivida) o domínio português desses territórios, ameaçados pelo desejo de autodeterminação.

    Em Setembro de 2008 estava de volta ao trabalho, não já no Museu Militar mas sim num espaço improvisado no quintal de minha casa. Sem um estúdio fotográfico em condições, improvisei uma tenda no terraço com paus e panos velhos. E porque agora tinha a possibilidade de trabalhar com outros actores para além de mim próprio (coisa inviável no Museu), pude convocar para as imagens uma figura que há muito me fascinava e que deu o nome à série: a “madrinha de guerra”.

    Personagem algo dúbia, patrocinada ao longo da guerra em África pelo Movimento Nacional Feminino com o objectivo de mitigar o isolamento das tropas através de uma activa troca de correspondência entre os soldados e as raparigas casadoiras na metrópole, a madrinha de guerra transforma-se aqui numa presença real, na materialização de um sonho, aterrando num palco de guerra vinda não se sabe de onde. É nesse mesmo palco que decorrem as cenas diversas, de uma série paralela que também aqui se apresenta pela primeira vez. Nas imagens de “flagelação”, o mesmo soldado que povoa as histórias anteriores procura agora proteger-se de uma agressão iminente, real ou imaginária.

    Já lá vão quase 3 anos de trabalho e sinto que ainda não esgotei este filão. Ao longo desse tempo li livros, vasculhei depoimentos sobre a “nossa” guerra, essa guerra de miséria e “pé descalço” tão próxima do Portugal rural da minha infância, mas em nenhum caso pretendi ilustrar factos reais, específicos. Por isso, as imagens muitas vezes escaparam-se à ideia que lhes esteve na origem e tomaram direcções imprevistas. Desligadas de uma leitura fixa e imutável, basta trocá-las de lugar para num instante tudo ser diferente… E a guerra de há 40 anos pode tornar-se na guerra de hoje.

    S. Pedro do Estoril, 2008 / 2009
    Manuel Botelho

  • A casa está calma e vazia. Vou tentando pintar qualquer coisa mas está a ser difícil acreditar no que faço. Aliás está a ser-me difícil acreditar seja no que for (da política às artes isto é uma miséria). Nada me interessa verdadeiramente e há muito que não vejo uma exposição de coisas recentes que me entusiasme. Vamos lá ver se Londres ajuda… mas sinceramente duvido. Há muita obra engraçada, muita ideia curiosa, mas nada que vá ao fundo das coisas e que me toque (na pintura o caso é ainda mais grave). E a ideia do artista solitário, essa espécie de “herói” (ou palerma…!) que avança sozinho sabe-se lá para onde é uma grande treta; sem companheiros de viagem ninguém chega a lado nenhum.

    31 de Agosto de 2005

  • 289 a 293.

    Culpa. Confissão. Os trabalhos em que me auto-represento como quem confessa um crime partiram das imagens do Luís Militão, o assassino dos turistas portugueses em Fortaleza.

    É-me extremamente penoso ser confrontado, todos os dias, com infracções e monstruosidades; às tantas é como se também eu fosse culpado de atrocidades inomináveis.

    S. Pedro do Estoril, 7 Dezembro 2004

  • Assassinatos. Sequestros. Escândalos sexuais e financeiros. Um mundo de discursos e falsidades à beira do colapso? Nos dias piores, a Maré Negra espalha-se por todo o lado, como a lava abrasadora de um vulcão. Não queima, mas nada consegue escapar à contaminação fétida desses momentos. E o nojo agarra-se à pele como borracha derretida. [...]

    As minhas pinturas não são isto. Porque as imagens existem num plano diverso do das palavras. As imagens dizem o que dizem, com o seu «idioma» particular.

    Para mais, nem tudo está perdido. Porque apesar de tudo as mães e pais ainda são ingénuos e as crianças inocentes. Às vezes. E em dias de sol o mar brilha.

    S. Pedro do Estoril, 13 Outubro 2004

  • Sobre obras realizadas entre 2001 e 2004 (172, 207, 221, 237, 240, 243, etc.).

    Balelas e pinturas. Visitações, baptizados e confirmações, penitências, flagelações, personagens do Botticelli ou do Poussin. Ainda! Será que a origem distante das minhas «estórias» e imagens verdadeiramente importa?

    E que dizer dos factos recentes? Serão eles mais relevantes? Ministros e arrumadores, figuras mediáticas à mistura com os zés-ninguém do dia a dia suburbano. Encontros e desencontros... Aventuras de crude no mar e contaminação das zonas costeiras.

    Dramas e violações, crimes reais e imaginários, casos de pedofilia e invasões militares. «Crianças» que matam e «crianças» que morrem. Discursos e tomadas de posse. Casamentos. Renúncias. Culpas e confissões.

    Uma irresistível atracção pela desgraça e por temas kafkianos? Não vale a pena continuar por este caminho. Depois de prontas, as pinturas têm uma autonomia que torna irrelevante a sua origem. Talvez. Era bom que assim fosse!

    S. Pedro do Estoril, 11 Setembro 2003

  • Carta (1)

    Chegados a este ponto do nosso diálogo vou falar um pouco de mim. Parece-me necessário para que possas entender as minhas posições.

    O que sou hoje é substancialmente diverso do que fui no passado... não muito distante. A minha vida tem sido uma longa sequência de abandonos e renovações, onde, apesar de tudo, sobrevive sempre uma profunda e inabalável crença.

    Tudo começou, como sabes, no berço e nos biberões. Nem vale a pena falar muito disso, embora seja tão decisivo que até me custa relembrar. Porque inculcou em mim uma duradoura crença na pintura, uma fé que em determinado momento mudou a minha vida. Quadros nas paredes, nos livros, por todas as casas da família e, mais tarde, nos grandes museus de Munique, Viena, Florença...

    Aos 18 e 19 anos fiz uma primeira revolução interior, influenciada pelas colagens POP. Mas foi muito fácil, porque podia manter íntegra a minha fé nas formas tradicionais da pintura (por via das colagens cubistas, dadaistas...) e nos conteúdos socialmente preocupados que muito mexiam comigo. Tínhamos assistido às revoltas de Maio de 68 e viviam-se as suas sequelas no movimento estudantil em Portugal. E Logo no meu ano de ingresso em arquitectura, na ESBAL!(2)

    Anos depois foi o tempo das convulsões que viraram o país do avesso e eu achei que agora era tudo mais claro. Umas leituras apressadas do Marx e do Lenine puseram-me no «bom caminho». Se a luta social era a coisa mais importante do universo, a arte devia forçosamente pôr-se servilmente ao seu serviço. Com o desfasamento de mais de 30 anos e uma fé inabalável na justiça do meu ideário político, lancei-me numa discreta produção merdo-realista . Durante esses anos de arquitectura dediquei-me à produção de desenhos anacrónicos, recusando liminarmente todos os vanguardismos da época, para mim profundamente reaccionários. Foi muito penoso. Embora sem qualquer militância política directa, vivia dividido entre a figuração de terrores pessoais e o dever político de servir uma causa.

    No início dos anos 80 as coisas mudaram. O meu casamento começou a dar o badagaio e a minha fé na grande ilusão hollywoodesca de uma vida em paz esfumou-se na dura realidade das coisas carnais. E recomecei a pintar. Como terapia, para exorcizar um profundo mal-estar e para voltar a existir no mundo, para redescobrir alguma coisa em mim que me salvasse do descalabro. Embora sempre muito perra e incipiente, a pintura começou a adquirir uma dimensão eminentemente pessoal e comecei a antever a necessidade de enterrar a arquitectura, sacrificando uma importante parte da minha vida para sobreviver à hecatombe.

    Foi a decisão de partir para Londres que pôs tudo a andar em definitivo. Nesse ano de 1983 a pintura neo-figurativa de pendor expressionista era a grande moda. E acertava em cheio com as minhas preocupações, em primeiro lugar porque se tratava de pintura - e por isso estava «geneticamente» caucionada pelo meu passado - mas também porque parecia falar da vida e, embora apenas pontualmente (ou ilusoriamente), de universos narrativos, privados, confessionais. Lancei-me numa profunda auto-análise que me levou a descobrir um mundo esquecido e primordial de pesadelos infantis e de um passado arcaico que se misturava com traumas do divórcio e do abandono. Tive assim que deixar para trás, em definitivo, as minhas raízes merdo-realistas, num trabalho de introspecção e confrontação com a arte que via por todo o lado.

    O regresso a Lisboa em 1987 correspondeu a outra fase. Mudanças na vida; mais um filho... e a noção clara de que algo estava a mudar no mundo das artes. Profundamente. As correntes neo-conceptuais encontravam-se em franca ascensão e voltava a falar-se à boca cheia na morte da pintura. A naturalidade com que tinha trabalhado em Londres chocava agora com uma realidade exterior cada vez mais adversa. E renasceu em mim o velho espírito de resistência; tinha sido da oposição nos tempos de Salazar e Caetano, tinha estado contra o Gonçalvismo (por ser «revisionista») e o Soarismo (demasiado social democrata), tinha odiado as neo-vanguardas dos anos 70 por não se colocarem ao serviço da Revolução serôdia que ainda me servia de referência; e agora estava condenado a regressar à oposição. Tinha terminado o período de paz, em que o mundo da arte parecia estar de bem comigo. Daí para a frente perfilava-se um longo tempo de novas e profundas contrariedades. Contra tudo e contra todos, «Pintura - Pintura - sempre e só Pintura», era o meu lema. Lia, visitava exposições de tudo e mais alguma coisa, informava-me, mas continuava a ser sempre a Pintura o centro da minha vida. Em todo o lado, em todas as circunstâncias. Depois, subitamente, o mundo da arte entrou em colapso. 1992 foi um ano terrível e a minha exposição de Londres não correu da melhor forma. Com a crise desencadeada pela guerra do Golfo nada se vendia. Em lado nenhum. E fui ensinar para o ArCO, para a galeria Monumental, para a Escola Secundária da Parede e, «last but not least», para a FBAUL.

    Encontrei uma situação interessante, tanto no ArCO, onde contactei o Pedro Calapez e o Rui Sanches, como na FBAUL(3), onde trabalhei com as pessoas de que falámos (4) e, sobretudo, iniciei um contacto frutuoso com os alunos, muitos deles extraordinariamente criativos e sem preconceitos. Vi-me forçado a olhar a arte de modo renovado; não podia permanecer fechado numa postura defensiva, com a ilusão de ter todo o mundo contra mim, porque agora eu tinha novas obrigações, novas responsabilidades. Já não era apenas o meu trabalho pessoal que existia na minha vida. E isso libertou-me uma vez mais de mim próprio. Porque hoje vejo-me forçado a reconhecer que o meu pior inimigo sou eu próprio, com as minhas obsessões e teimosias, embora esse seja também, paradoxalmente, o meu ponto de ancoragem.

    Em conclusão, tive que me abrir ao mundo e assumir outra atitude em relação à produção artística contemporânea. E descobri, para minha surpresa e felicidade, que há muito mais artistas a fazer fotografia, vídeo e instalação, que partilham o meu universo narrativo, do que pintores (contemporâneos claro está). Curiosamente, em vez de me sentir mais marginal, voltei a sentir-me reintegrado num mundo de significações. E embora subsista em mim uma profunda mágoa e revolta quando leio as atoardas mil vezes repisadas sobre o fim inexorável da pintura, ou quando sou agredido nas minhas convicções mais profundas por autoritarismos pseudo conceptuais, isso não me impede de olhar o mundo da arte contemporânea com outra abertura e outra alegria. Claro que continua a haver por aí muita merda, mas em boa verdade, também a pintura dos anos 80 pouco me dizia; embora gerasse uma ilusão de pertença, eu era estranho ao vazio dos fantasmas flutuantes e espalhafatosos do Salome, do Sandro Chia, etc.(5) Não me diziam nada. Em boa verdade sinto-me bem mais próximo dos vídeos do Bill Viola, das fotografias do Jeff Wall, ou das instalações confessionais da Louise Bourgeois. Por isso, para mim, defender a arte não é defender cegamente a pintura, embora quando entro no estúdio seja a pintura, sempre a pintura, que me ocupa os dias e a mente. Fiel aos meus princípios, tenho aprendido com a vida a renovar os meus interesses... e o Picasso e o Goya continuam a ser os meus grandes antepassados.

    S. Pedro do Estoril, 21 de Dezembro de 2002


    Notas:
    1. Carta a António Matos, 21 de Dezembro de 2002.
    2. Escola Superior de Belas Artes de Lisboa.
    3. Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.
    4. Isabel Sabino, João Afra, Francisco Aquino, António Matos, Virgínia Fróis.
    5. Entre as excepções a essa regra, devo assinalar uma particular empatia com Philip Guston, Sigmar Polke, Georg Baselitz (obras dos anos sessenta) ou Paula Rego.

  • 149, 151 a, 166, 168, 170, 171, 171, etc.

    1996/1997 foi um ano muito complicado [...] Quando o ano acabou encontrava-me completamente esgotado, cheio de sentimentos de auto-comiseração... de ressentimentos...

    [...] Essa sensação de infelicidade levou-me a olhar para o espelho. E de repente tornava-me no actor da minha pretensa «desgraça». Até aí a minha auto-representação tinha sido esquemática, transfigurada, pouco preocupada comigo, centrada num outro assunto: a relação aluno/professor. Mas agora pela primeira vez era eu que estava em causa. [...] Desenhei. Desenhei-me continuamente ao longo de dias. Há muito que não desenhava «modelo» de forma tão continuada (desde a minha passagem pela Byam Shaw School of Art em 1984 e 1985).
    [...]

    Entretanto a minha atenção tinha-se virado para os «agressores». [...] Jovens a lançar pedras ou em atitudes agressivas, já não tinham a conotação de revolta contra uma injustiça; eram antes agressões gratuitas, primárias, completamente destituídas de objectivo.

    De súbito tudo se associava e surgiam-me de uma memória recalcada as cenas da paixão de Cristo... O universo da minha pintura parecia resvalar para um território que a opção ideológica próxima do marxismo e a postura de ateu me tinham interdito durante anos. A arte do passado tornava-se surpreendentemente interventora, mesmo se o meu modo de repensar velhos temas os distorcia, os subvertia.

    A verdade é que esse olhar para o interior, associado a uma espreitadela a pinturas como a extraordinária Madonna and Child de Bellini (na National Gallery de Londres) ou a estranha versão de Grunewald (sobre o mesmo tema), me fizeram reflectir de outro modo sobre o que é ser pai hoje. Ser pai é muito como ser mãe, porque ser mãe é muito mais do que gerar e parir uma criança. Se me levanto à noite quando o filho chora, se lhe mudo a fralda e lhe dou a papa, se me preocupo com o frio e o calor, se compro Chocapic no supermercado e estendo à janela a roupa lavada, eu não sou pai no sentido tradicional do termo, mas mãe dos meus filhos. E se sou mãe, posso (?) ocupar o lugar da Virgem (!?) nas pinturas religiosas. [...]

    Visitação! Há algo de formal nessa cena. Uma proximidade em que pressinto um estranho distanciamento. Estarei a inventar, mas associo a cena às visitas de Estado de governantes e estadistas, ou aos cumprimentos que se trocam entre negociadores de grupos económicos... Homens de fato cinzento que enchem as páginas dos jornais, simultaneamente próximos e distantes, por vezes simulando atitudes de intimidade. Já não há pais ou mães, mas apenas encontros. Alguma coisa pode estar a mudar.

    S. Pedro do Estoril, Abril / Maio de 2000

  • Sobre as obras expostas no Museu Nacional de Arte Antiga em 2000

    Da vergonha de ser homem? Sequestradores, corruptores, violadores, indivíduos impelidos pela natureza para a conquista de território, levados à mais abjecta submissão à toda poderosa testosterona! As prisões estão cheias. É esta a vergonha de ser homem? Esta condenação a viver sob o domínio de um Satanás escondido nos chamados «impulsos naturais»?
    [...]

    Esta vergonha tem que ser expiada! (?) Será que me cabe a mim pessoalmente e a todos os outros que sentem este problema como eu, redimir os «pecados» dos nossos pares ancestrais, dos nossos pares de agora? Será isso que fazemos quando damos papa aos filhos? Cada vez mais, estamos a tornar-nos numa versão Honoris Causa da mãe de família [...]

    S. Pedro do Estoril, 18 de April de 2000

  • Todos os dias desejamos o novo processador, ainda mais rápido e eficaz. Todos os dias tememos a invasão do betão na paisagem. Bem e mal, a mudança tornou-se parte indissociável da nossa própria estabilidade. Contamos com ela e não sabemos imaginar-nos de outro modo. Para nos sentirmos vivos já não basta andar por aí. É preciso acompanhar a vertigem e quando falha a imaginação, finge-se mudar, porque há muitas outras tonalidades de azul para pintar o cabelo.
    [...]

    Todos os esboços de programa de acção soam a falso. A época dos manifestos parece encerrada, ou pelo menos adiada sine die . Nas palavras de Donald Kuspit, o universo da arte encontra-se actualmente povoado por Identidades Idiossincráticas , personalidades mais ou menos inclassificáveis que não podem enquadrar-se com rigor em qualquer esquema fechado. O mundo está irremediavelmente desarrumado.
    [...]

    Estamos tramados! A nossa esperança de vida é longa e através dos anos tudo tem que acontecer com mil cautelas. É imperioso evoluir... e paradoxalmente não podemos mudar!

    A aceleração do mundo diz-nos que parar é morrer. Mas por outro lado, a nossa proposta tem que ser claramente identificável para ganhar visibilidade, para existir. O nomadismo constante dificulta ou impede mesmo o reconhecimento público [...]. As forças divergentes do mito da consistência do artista e, simultaneamente, a necessidade imperiosa de progredir, colocam-nos no fio da navalha, divididos entre forças de sinal contrário. Temos que ser ao mesmo tempo iguais e diferentes de nós próprios. Não há saída fácil para este problema, agora que a velha artimanha do « estilo individual » parece ter-se tornado definitivamente obsoleta. [...]

    S. Pedro do Estoril , Janeiro/Maio de 2000

  • Há dias, uma aluna minha mostrava a sua inquietação e perplexidade perante a quase infinita gama de possibilidades técnicas e formais na resolução de um exercício. Quando a insegurança se instala, a responsabilidade da escolha transforma-se em inimiga da liberdade (é bem mais fácil obedecer a regras impostas). [...]

    O dia a dia no atelier é uma actividade solitária. O isolamento torna-nos vulneráveis, ansiosos por sentir que existimos, que não é inútil o que realizamos. Para quê mais objectos, quando o mundo está a abarrotar de tralha? Para quê mais pinturas, se nas paredes não resta espaço para as arrumar? Para quê mais ideias que outros já exprimiram? E aí vamos nós em busca de legitimidade, desesperadamente, como o viajante do deserto à procura de um oásis. A miragem está lá, mas fugidia, esquivando-se a todo o momento... Compram-se revistas, visitam-se as exposições mais badaladas da actualidade, e regressamos ao estúdio com «mais força», mais iludidos que convencidos. Por favor digam-nos o que devemos fazer... que regras cumprir...

    A liberdade que conquistámos pesa como chumbo, é intolerável e opressiva... deixem-me ser da oposição! Deixem-me ser do «Regime»!... Mas sobretudo deixem-me ver com clareza quem são os bons e os maus, os belos e os feios, os justos e os falsos... Merda.

    S. Pedro do Estoril , Janeiro 1995

  • Sobre obras como Devastação – Sorrow with Angels, 1994 (137), ou Lamentos à Deriva - The Killing, 1995 (136).

    Estava eu na praia, quando vejo na revista do Expresso imagens dos massacres (salvo erro do Ruanda). À minha frente, pessoas a corar ao sol, nas fotografias, cadáveres prostrados a apodrecer.

    Abril 2000

  • Tenho vindo em parte a sacrificar a riqueza da cor a uma maior estruturação do espaço.

    Cada pintura é um universo limitado que exige escolhas e sacrifícios. Não esqueço a lição de Picasso quando excluiu a cor de «Guernica» (o que provoca uma contenção emocional) ou Matisse quando pinta «A dança» em praticamente 3 cores base. [...]

    Londres, Abril 1994

  • 129, 132, etc.

    Serão anjinhos? Serão assassinos? Tudo isso. Dava aulas na escola secundária da Parede. Quando observava os meus alunos via alternadamente o seu ar angelical e, em alguns, a faceta mais agressiva da humanidade. Duplicidade. Coexistência de opostos.

    S. Pedro do Estoril , April de 2000

  • Gosto de pintura com cheiro em oposição à pintura asséptica

    S. Pedro do Estoril , 1994

  • Sobre "A tralha e a família – She Carries them Everywhere", 1992 (118).

    Continuo a ter sentimentos contraditórios relativamente à humanidade; por um lado acho a nossa estupidez desprezível e simultaneamente admiro a coragem de resistir na adversidade... [...] Para mim, esta mulher quadrada , estúpida e incrivelmente forte, é a figura de uma espécie de heroína resistente que leva a sua avante dê lá para o que der.

    Londres, Abril de 1994

  • [...] no nosso país não se operaram verdadeiras rupturas, mas apenas «variações» em torno de movimentos importados. Isto não constitui a meu ver uma inferioridade, pois não é toda a gente que inventa o cubismo ou a teoria da relatividade, mas todos temos o direito, senão o dever, de assimilar essas lições. Deveríamos talvez rescrever a cronologia (ou «história»?) da arte em Portugal com maior atenção à verdadeira qualidade, e menor fascínio pela pseudo-inovação [...]

    S. Pedro do Estoril, Fevereiro 1994

  • Carta aos Colegas das Artes

    No mundo da moda, colecções diferentes cada ano asseguram um renovado interesse do público. No intrincado jogo todos procuram antecipar/moldar as oscilações do gosto. [...] O mundo das artes funciona um pouco do mesmo modo.

    Há poucos anos, jovens que "militavam" pintando clandestinamente as paredes e comboios do metropolitano de Nova Iorque foram descobertos pelo mercado. O sistema encontrou um filão e as galerias encheram-se de graffiti. Salvo raras excepções, [...] estes jovens estão novamente a "lavar pratos", a onda desfez-se. Não significa isto que o graffiti tenha acabado; apenas o mercado se fartou.

    Nos anos 60 vimos surgir mais uma vaga de pintura abstracta. Após quase duas décadas de esquecimento eis que renasce uma nova corrente de abstracção – Neo Geo. Embora com um espírito subtilmente diverso, os princípios são basicamente os mesmos e parece-me absurdo pensar que este trabalho tenha permanecido obsoleto durante o interregno para voltar a ser relevante 15 anos mais tarde.

    Nos anos 70 as correntes predominantes negavam a validade da pintura. Gritava-se "A PINTURA MORREU" e houve quem escrevesse no currículo a data em que tinha deixado de praticar esse crime estético. Surpreendentemente uma nova onda surge no início dos anos 80, e à cabeça aqueles que andavam fora de moda. O público mais vasto conheceu finalmente as pinturas figurativas (horror dos horrores!) que Baselitz, Penck, Guston ou Kiefer vinham fazendo desde há muito.

    Que existe um mercado internacional da arte é coisa sabida. Que ele tem maior vitalidade nos países ricos da Europa e nos EUA, parece evidente. Não espanta por isso que a conjuntura internacional da arte esteja na sua directa dependência [...]. A validade das formas culturais não pode no entanto ser julgada por critérios que apenas fazem sentido para esse mercado de ponta.

    Se é verdade que muita da produção artística actual é (como sempre foi) genuinamente bolorenta, isso não significa que em cada momento apenas sejam relevantes as tendências estéticas ditas "na berra"; um vasto potencial de criação sobrevive à margem dessas correntes. Nas capitais da arte milhares de artistas trabalham diariamente das mais diversas formas; é nessa enorme riqueza que o sistema vai encontrar o "ar fresco" de que precisa quando o público começa a cansar-se da vaga anterior.

    Essa necessidade periódica de mudança tanto leva à promoção de tendências menores e oportunistas, como à de correntes genuínas, culturalmente relevantes. As primeiras constituem geralmente acontecimentos isolados, pontuais, ou derivativos (pequenos becos sem saída). As segundas são como elos nas vagas de fundo do pensamento artístico do século XX.

    [...]

    E agora a questão central, aquela que me levou a escrever todo este arrazoado: Que fazer (nós, artistas) no meio de tudo isto? Deixar o cinismo tomar conta, ou manter uma atitude positiva?

    Nessa selva que é o mundo das artes uns jogam pelo seguro tentando acompanhar a onda, mudando de estilo como quem muda de camisa até que alguém dê por eles. Mais cedo ou mais tarde a falta de autenticidade irá tornar-se evidente; um hipotético sucesso será sempre efémero. Outros prosseguem o seu trabalho sem negar influências mas sem abdicar da sua identidade. E se a maioria destes vai permanecer numa marginalidade mais ou menos obscura, alguns são no entanto os verdadeiros criadores do futuro; o trabalho que realizam hoje constitui o potencial da arte do amanhã.

    S. Pedro do Estoril, Março de 1988 – Texto publicado no Jornal de Letras em 5/4/1988

  • Se no meu trabalho também surge a experiência pessoal ou os meus pesadelos, eles referenciam-se sempre ao contexto mais vasto da vida social, e nunca constituem campo isolado.

    A minha narrativa está aberta ao exterior. As memórias da minha infância são as personagens que conheci, as suas vidas, como eu os interpreto. São arquétipos dum Portugal rural que me chegou por via das criadas e caseiros [...] da terra da minha avó materna.

    A Sofia [criada lá de casa durante mais de 40 anos] é aquela personagem feminina, compacta, cheia de força, dominada por valores de submissão quase medievais.

    A minha história é também a do fim de uma era; tenho sido testemunha disso. A desertificação do campo, os comboios cheios de emigrantes...

    Os que ficam e os que partem. Gente que eu conheço e que são o símbolo de valores perdidos e valores ganhos, "vítimas" de uma mudança sem retorno.

    Londres, 31 Janeiro 1986

  • [...] O equilíbrio não faz parte desta vida em 1986. Por vezes parte do edifício desmorona-se. Aqui ou ali, uma cena de paz aparente em que as figuras executam tarefas (geralmente não específicas).

    Há sempre uma grande dose de angústia mesmo quando as cores são brilhantes – claras. [...]

    Londres, 1986

  • Contornar os problemas; abordá-los no seu reflexo. A melhor forma de falar duma bicicleta não é tirando-lhe uma fotografia, mas falando na cifose (na marreca) do ciclista.

    Londres, 20 Maio 1985

  • Não é a nostalgia do passado. O passado é um pesadelo que sobrevive no presente sob diferentes formas.

    Londres, Abril 1985

  • Deslocando uma cena de prisão para o exterior, criando uma paisagem imaginada em que decorrem os actos, estes ganham poder evocativo. São parábolas sobre os antigos temas.

    Londres, 25 Março 1985

  • 028, 029, 029 a, etc.

    [...] O ambiente está a ficar mais ou menos tenebroso, com a utilização do preto. As caras misturam-se com volumes que podem ser rochas, edifícios, castelos. Como relembrar um pesadelo; os locais vão sendo sucessivamente outros. Preciso introduzir mais narrativa? Aqui é que bate o ponto. E contar o quê?

    Londres, 30 Novembro 1984

  • Sobre obras como as da série Country by the sea (c. 1984) – 023 d, etc.

    a) A importância do tema.
    Imagens / sentimentos do passado português (talvez também de outros países latinos).
    Não são ilustrações de acontecimentos particulares ou factos históricos. Não estão localizados no tempo.

    b) As figuras são por vezes definidas; claramente construídas e colocadas no espaço (um pouco como Guston). Noutros casos, trata-se de figuras de sonho num espaço (ambíguo) complexo (próximo do cubismo).

    c) A maior parte das obras têm uma estrutura central como um alvo. Não sei se tentarei uma forma mais difusa de as construir, com vários pontos de interesse e talvez mesmo uma narrativa. Até agora, a narrativa mantêm-se sobretudo nas séries completas (que funcionam como unidades em si).

    Londres, Outubro 1984

  • Sobre obras como Desde que eles vão bebendo uns copos (026), 1985, Atolado na Lama (029), 1985, etc.

    Quando a mensagem é profundamente sentida não é possível (?) transformá-la numa imagem com força equivalente.

    [...] É preciso agarrar uma ponta e ir puxando o fio. Usar o que é pintável .

    [...] Qual o campo específico da pintura? Não adianta tentar fazer cinema ou literatura pintando.

    Londres, Outubro de 1984

  • A propósito de desenhos de modelo (c. 1985) – 011, 012, 016, etc.

    O modelo está ali. É a presença. O desenho começa aí. Depois o desenho ganha personalidade própria. O modelo passa a ser apenas uma referência (uma ferramenta?), até o desenho ter vida própria, autenticidade.

    O modelo foi o ponto de partida, em seguida o interlocutor, mas no final o que importa é o desenho em si e não uma efémera semelhança.

    Por isso, frequentemente continuo a trabalhar depois de o modelo ter ido embora. O desenho ganhou autonomia.

    Londres, 22 e 23 Maio 1985

  • Sobre o seu percurso criativo em 1984
    Resolvo fazer «auto-terapia»; desenhar tudo o que me vier à cabeça sem preocupações formais.
    [...]

    Durante 2 meses executo cerca de 5 desenhos por dia focando os temas mais díspares; educação, casamentos, sexo, paisagens portuguesas, etc.

    As ideias surgem de toda a parte; livros, sonhos, memórias, notícias do jornal, conversas, programas de televisão.

    Londres, 12 de Junho de 1984 (de um relatório enviado à Fundação Calouste Gulbenkian)